sábado, 23 de agosto de 2008

Uma festa capital


aos leitores de franz kafka



Três carrapatos e uma mutuca planejavam a enésima festa "precisamos de 30 formigas pro trabalho pesado, bestas pra dividir tarefas e parte do lucro, prender o rabo de leões pra não assanhar formigueiro nem provocar o tribunal, seduzir autoridades pros apoios complementares, acolher a preços de mercado cinco mil participantes, garantir o canto da cigarra..." quando um pensamento selvagem, vindo da cabeça da mutuca, invadiu a sala dos coqueiros, - alguma coisa me diz que sangue de macaco tem veneno – que bobagem, retrucaram ao mesmo tempo os carrapatos; - de onde vem nossa robustez, me diga?! – é que vocês não voam pra sondar o tempo, medir as distâncias, farejar corpos em movimento..., ponderava a mutuca; - carrapato não faz zoada, na dá bandeira, gruda, e pronto!, insistia um dos carrapatos cabeça dura., - entre nós, agora identifico, não há só uma diferença de natureza, mas de método, politizava a mutuca; - mas que chegam a mesma síntese: sangue, sangue, dinheiro, dinheiro!, misturava as bolas o carrapato mais ganancioso. Pra não perdurar o impasse nem estragar a festa, o último carrapato sai de seu silêncio e impõe: deixemos de lado qualquer pensamento selvagem e voltemos a trabalhar maquinalmente feito as formigas e as bestas de carga. Dominando intelectualmente toda essa trama os leões sem marx apenas moviam as suas caudas pra lá e pra cá, indiferentes...




conto n.1 de osmar moreira


quinta-feira, 7 de agosto de 2008

verbo pedir

tece vida teus visgos... e confunde os sentidos.
extrai do pão sobre a mesa mal posta,
do café da manhã nublada,
o gosto insosso de todo-dia.

faz da vertigem do cálculo matemático,
da economia dos gestos,
um déficit irrecuperável ao seu favor.

no sonho, permanece em suspenso...
filtra o sentido das filigramas da trama
que preenche o sono dormido.

do cumprimento aos conhecidos,
desobriga a cerimônia;
faz apenas de afecções olhares convergirem.

mas não deixa aquela flor morrer afogada
retira-lhe a superabundância
e contorna com nitidez seu croma fácil.

promove quem sabe a alegria em mim
ao deitar-me aos ouvidos em que direção
[nascerá o sol
daquele riso de que não posso esquecer।

por André Luiz Oliveira

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Põe um aparelho no seu dente,/Coloca a argola na orelha,/Depois põe esse piercing na tua língua,/Injeta silicone no teu peito,/Faz uma porção de tatuagem,/Encosta na tua pele ferro quente,/Imprime no teu corpo uma palavra,/E põe um parafuso na cabeça./Faz uma trepanação no cérebro,/Puxa, corta, rasga e aperta./O teu sexo, o teu sexo./Faz um pieling, põe um marca-passo,/Se mutila todo e fica vesgo,/Introduz um córneo na tua testa /E põe um parafuso na cabeça.

Skylab

domingo, 3 de agosto de 2008

A moça tecelã, de Marina Colasanti

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.