quinta-feira, 23 de abril de 2009
A NOITE (Wilton Oliveira)
Aliou-se ao banheiro para vencer os odores que emergiam do seu corpo, quando percebeu as marcas de unhas em suas costas. Tirou a cueca, mas antes de abrir o chuveiro ouviu o barulho da sirene, o grito da mãe, o pancada na porta e a voz do policial, dizendo: você está preso!
Manifesto Odradek de Cinema nômade
Um beco sem saída. Estanque. Sem passagens ou buracos pelo muro. Oxigênio a um segundo para se esvair. Sufoco. Olhos trêmulos. Angustia e o indizível em ruídos ramificado no corpo... Eis uma imagem de um cão vira-lata encurralado por outros cães robustos numa avenida habitada de transeuntes diante de um famoso Shopping Center.
Certamente, esta é uma cena comum na crônica cotidiana. Porém, beira o absurdo justamente por ser naturalizado na linguagem das relações. O espantoso da cena é que o espantoso não espanta ninguém. Em outras palavras, o ruído do corpo canino, a falta de oxigênio e o beco sem saída tornou-se natural num mundo prenhe de totalitarismo aliado ao discurso neoliberal. Mas, o que pode emergir além da mentira e força bruta na trama cotidiana? É possível uma linha de fuga do cão? É possível plantar primaveras neste jardim repleto de sudários com crânios amassados em sua estampa?
Estas interrogações sublinham a redação inquieta de nossas grafias. Grafias agrimensadas na transpiração de nossas existências, em que a arte extrapola o modo parnasiano“arte pela arte”; transgride a relação com o estalinismo; desobedece a lógica do capital e se dilui nas artérias surrealistas “ arte pela vida, vida pela arte”. Neste sentido, sentir a arte e re-engenhá-la no cotidiano significa além de ampliar e embaralhar os sentidos fazer da boca, ouvido; do ouvido, olho; das pernas, coração; do cérebro, pele; da pele, estômago...; rizomatizar a existência pelo crivo estético da crueldade de Antonin Artaud. Assim, fazer da vida uma moldura vazada. Uma aquarela ilimitada que borre com texturas absurdas o quadro da rotina que tanto desenha e fabrica o mundo que nos sufoca.
Afirmando tais inquietações com a arte e sua ligação com uma atividade política, chegamos ao cinema. Qual cinema? Filmes da Sessão da tarde? Filmes da Xuxa produções? Nada disso. Não queremos entretenimento aliado a uma máquina de produção técnica que se prolifera e engendra modos de vida “ que nos mantêm na frente da TV, que é pra te entreter, que é pra você não ver que o programado é você”. Antes, trata-se de um cinema identificado com a insurgência Latino-Americana de re-escrever contra, re-assistir contra discursos hegemônicos instalados na cultura e seu signo autoritário e normativo. Berrar uma Verdade tropical e/ou no mínimo multiplicar uma assertiva de Oscar Wilde: “A autoridade ao seduzir as pessoas a se conformarem, cria e alimenta uma espécie muito grosseira de barbárie”.
Mas o que temos além da vontade? A fome, que além de biológica é cultural. Fome conciliada com a estética da fome de Glauber Rocha. Não é uma fome para desejar a expressão de apiedação dos centros de poder ou das políticas oligárquicas que ainda circulam nas cercanias do sertão ou da micro-região de Alagoinhas; nem muito menos sermos pedintes das sobras-doadas que confortam o sentimento de justiça social da burguesia; nem fazer dessa condição um motivo de vergonha (Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto). Trata-se antes de tudo, de fazer da fome um ato de violência que conjure a dívida histórica da pilhagem do velho mundo e suas estruturas contemporâneas rostificada nas elites da nossa sociedade que representa 2,3% da população, mas concentra 90% da riqueza nacional; fazer da fome uma Revolta dos Malês na atual exploração do trabalho e da mão de obra; um Chiapas em cada praça da América Latina; uma Barricada do desejo em cada rua, cada seio familiar; fazer explodir um Vietnã em cada esquina.
Uma tela ou uma parede em branco. Um projetor. Um aparelho de DVD. Algumas centenas de filmes e documentários que provoquem um sôco no estômago da platéia; instalem um dissenso; abra a vida para outra série menos congelada por nossas verdades absolutas; estilhace e/ou formigue o inconsciente coletivo marcado pela norma; e no limite, torne insuportável nossa vida na sociedade burguesa do espetáculo e do consumo. A pretensão é imensa? Talvez. Mas, organizar amostras semanais ou quinzenais de filmes e documentários em circuitos temáticos de exibição ( violência, movimentos sociais, sexualidade, drogas...) com debates e discussões nos Centros de cultura, Associações comunitárias, Garagens, Feiras, Escolas beija a assertiva de Milton Nascimento: Todo artista tem de ir aonde o povo estar.
Mas será que nos esquecemos do cão? Não! Ele transita em nós. Nas situações vividas por nós. Em nossas práticas: cão-cães! Na lente dos nossos olhos. Assim, a exibição de filmes nas cidades da micro-região de Alagoinhas aliado a debates é um enfrentamento com aquilo que há de mais vil com o mundo e este mundo vil também não deixa de habitar em nós. Trata-se, portanto, ao mesmo tempo, de uma guerrilha minimal e geopolítica com a existência. Uma brecha para discussão; questionamento do real para abrir o espaço e o tempo para possíveis em que o cão escava um buraco no muro que o deixava sem saída. Tornar-se o grunhido do vira-lata para construirmos outras relações de afeto que não seja apropriada pelo poder. Uma utopia? Sim, mas experimentada no presente, no plantio da primavera. Utopia enquanto devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha e responder ao intolerável.
Por: Jairo de Oliveira ( jarito)
O Coletivo Odradek de Cinema é formado - a princípio - por: Jairo de Oliveira, Cristopher Moura e Wilton Oliveira.